O Luto Nos Tempos Atuais

Vivemos tempos de perdas, de luto. Se não perdemos alguém de nossa convivência ou proximidade, perdemos o mundo em que vivíamos. Nossa rotina, hábitos e prazeres cotidianos tiveram que ser modificados. A tranquilidade de ir e vir sem um vírus desconhecido e muitas vezes letal a circular pela cidade foi perdida. Se não choramos a morte de um familiar, amigo, parceiro de trabalho, ídolos e referências sociais e culturais, nos sensibilizamos com a notícia cruel de tantas mortes no mundo em curto espaço de tempo. No Brasil já se contabilizam mais de 100 mil mortos! Como dimensionar tamanho sofrimento? Como simbolizar essa terrível incidência do real?

O trabalho de nomear a dor e angústia deste momento chamamos de processo de luto.
Trata-se de um importante recurso para a elaboração da perda, do corte não desejado e muitas vezes não previsto numa história. É preciso um tempo para que cada um possa se haver com as emoções que se mobilizam e nos afetam de modo singular. Tempo necessário e determinado. Necessário para que a dor e a tristeza encontrem formas e palavras de se expressarem e deixarem suas marcas simbólicas. Determinado, porque é importante que tenha uma duração, que seja um tempo finito para que possamos seguir a vida adiante contando com essas marcas simbólicas como parceiras.

O luto não tem padrão ou manual, tempo pré-determinado nem forma ideal. Ao longo do tempo fomos criando rituais de despedida e homenagem que começam a circunscrever algo do indizível da dor de cada um. Os que choram os mortos da COVID-19 perdem também um ritual que nossa cultura inventou: os velórios e enterros abertos ao público. Às famílias em geral só é permitida a presença de dois ou três por alguns minutos. As despedidas têm sido muito solitárias, cada um ou cada família contando apenas com suas lembranças, imagens e palavras. Perde-se o compartilhamento do laço com o outro, a troca de afeto e conforto entre pares que os rituais conhecidos favoreciam. Novos rituais precisam e estão sendo inventados.

As redes sociais vem se tornando parceira importante nessas novas invenções. A iniciativa do site Inumeráveis é uma delas. Nele, os enlutados são convidados a escrever e contar a história de seus entes queridos. Jornalistas, escritores e outros voluntários fazem uma narrativa literária. É um convite a colocar em palavras a dor, em dizer o que tem de mais singular no um a um das estatísticas globais. Quem se perde não é número, tem nome, história e laços afetivos. Outras homenagens vão surgindo… Algumas em contextos específicos, como a realizada pela Escola Brasileira de Psicanálise à nossa querida psicanalista Stella Jimenez ou a história em quadrinhos criada pela ilustradora Taissa Maia, que com delicadeza conta a história de como a COVID chegou em sua família e da perda dolorosa de sua avó. É importante que cada um possa encontrar sua forma de se despedir e atravessar seu luto.

Estamos sendo exigidos a encontrar novas maneiras e formas. Ainda temos a palavra e o laço com o outro. Mais do que nunca é o que nos resta diante do inimaginável, é o que nos separa da barbárie.

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Andrea atende na Ilha do Governador. RJ. Contato: 99359-7914

Andrea Marcolan

Andrea Marcolan é psicóloga, psicanalista. Com residência e especialização em Saúde Mental pelo Instituto Phillipe Pinel. É trabalhadora da rede de saúde mental do Rio de Janeiro.

1 Comment
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    Luciana Massad
    Postado 18:23h, 15 agosto Responder

    Texto perfeito.

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